quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Exercendo instantes

Não quero ser um retrato, quero ser um quadro de tinta fresca. Aquele que paralisa o olhar de tanto incomodo capaz de raptar alguém de sua conformidade diante de tamanha imperfeição. Obra inacabada que faça mudar. Mudar. Mudar-me. A namorada exemplar eu não quero ser. Aquela que liga na hora certa. Aquela que sabe escutar. Aquela que sorri para os amigos dele. Também não quero ser a melhor recordação de um amante amado. Não basta. Pretensiosa sim. Basta não. Quero ser sem atributos. Ser no instante. Na efemeridade. Ser até esgotar. De tão esgotado não ser mais nada. Nada. Isso, isso que eu quero ser: nada.

Estive pensando em Dona Idalí... Ela me irrita. Tão previsível. Incapaz de agüentar sua própria ousadia. Liga, mas não diz. Ouve, mas não corresponde. Talvez eu tenha um pouco de Dona Idalí, por isso me irrite tanto com ela. Talvez. Jamais quero sê-la.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Nego tudo

Não perderia a fala se você me ouvisse
Não me cegaria se você fosse presente
Não sumiria se você me visse
Não viveria se não te amasse

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Nasce, cresce, se reproduz e morre

De cadeira em cadeira a sala ficou vazia. A multidão sentada não tinha nada a dizer. Também não tinha nada a sentir. Petrificou. A ausência de luz se impunha sobre aqueles seres. Humanos talvez. Alimentam-se do passado e dormem a espera de algo, sem fechar os olhos. Abandonados a vida, lamentam o que não foram. Condenados a viver, contam histórias de si mesmos - que jamais vivenciaram. Só para acreditar. Seres humanos sim. São eles que têm esta coisa de “acreditar”. Estão sempre querendo crer. Na sala, deram-se nomes como se não fossem registrados em cartório e riram da desgraça alheia como se não fossem desgraçados. Sob o tapete persa inaugurado naquela noite todos brindaram o encontro erguendo taças de cristal. Erguiam também as posses, o "status", as vantagens e a indiferença. Uma máscara conversado com outra. E quem falava alto era o umbigo de cada um. Mesa farta, umbigo inchado e um buraco. Buraco esse a espera de ser tampado. E aqui inevitavelmente eles se igualam. Não tem pompa, não tem título, não tem perfume que os diferencie. Pobres humanos!

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A. ou Poeira empoeirada do móvel da calçada

Está tudo parado. A coleção de cds. A leitura daquele livro interessante. Os ingressos do teatro. Está tudo apagado. O quarto de diálogos. O caderno secreto. A exposição inédita. Está tudo a beira. O copo de água. A cabeça da artista. Os pés descalços. Está tudo gelado. As cordas do violão. As mãos magras. A coberta quente. Quente está tudo. O chá da noite. O banho no chuveiro. O rádio ligado. Está tudo longe. A maquiagem ousada. O salto provocante. O desprezo necessário. Está tudo em branco e preto. O céu azul. O esmalte vermelho. O amor puro. Está tudo vazio. O pote de doces. A caixa de cartas. O corpo dela. Está tudo guardado. Você e eu. Eu e você. Você e eu. Eu e você. Está tudo veloz. A paixão inesperada. Os meses de outono. O fim de tudo. Tudo está onde deveria estar? Gota a gota, a vida escorre pela rua, pela foto, pela parede, pelas pernas, por mim e por ti.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sede

água limpa
água molha
água queima
água penetra
água refresca
água arrebenta
água alimenta
água na boca
água sufoca
água brota
água mata
dentro da água eu nasci

domingo, 4 de novembro de 2007

O Vestido

Da cozinha dava para escutar os sapatinhos apressados pisando na madeira e repentinamente um silêncio que parecia eterno até o sol se por totalmente. Todos os dias de outono eram assim naquela casa. Envolvida pela história que ouviu sobre o vestido amarelado de tão velho, Lia passou sete anos de sua vida adorando o outono.

Tudo começou aos sete. Era só as folhas secas começarem a aparecer, que a pequena menina, de sardas no nariz, corria até o sótão. O vestido ficava lá, pendurado num cabide, junto a muitas outras histórias empoeiradas. O sótão sempre foi escuro, a única luz vinha de uma vidraça localizada no teto. Por vezes, a menina franzina dormia ali mesmo, encolhida, com o dedo na boca.

Ela sempre contava algo para ele. Dividia todos os seus segredos, inclusive o seu maior. Lia tinha mania de derrubar o vaso de flores do batente da janela do seu quarto. Não por pirraça, apenas por amor. Para ter a mãe perto enquanto limpava o chão, reclamando do vento, dizendo que iria mudar o vaso de lugar. A menina retrucava. Explicava que as flores precisavam de luz e por isso o local era o ideal. A mãe, que costumava não ouvir, ouvia e deixava o vaso ali, talvez até por saber o segredo de Lia.

Lá em cima, a menina costumava jogar pedras no vestido só para rir. Ria até gargalhar. O pano girava para um lado e para o outro, e assim, ela imaginava as danças, que ele dançara.

Numa destas tardes, a menina o achou sem graça. Apertou o tecido para ver a reação e nada, mordeu com toda a força, que uma boca de nove anos de idade podia fazer, mas ele continuava na mesma posição, então, ela resolveu radicalizar. Ora aquele vestido, o seu melhor amigo, não podia ser tão passivo. Com o guache recém ganhado da professora resolveu dar cor ao tecido. Começou pela saia, ali desenhou alguns sonhos, um deles conhecer o pai. Quando começou a parte de cima, sua mãe lhe chamou. Lia tomou um baita susto, fez um rabisco enorme e guardou o guache num baú.

Desceu apressada para disfarçar, mas foi flagrada lavando as mãozinhas, na pia da cozinha. A mãe não entendeu o constrangimento da menina e foi verificar o que havia acontecido no sótão. Passou a mão no vestido e a luz, que já estava indo, revelou as marcas da tinta.

Lia subiu pedindo desculpas e já sentiu o tapa no rosto, chorando, continuava a se desculpar. Este era um dos únicos momentos de contato com aquela mulher. A hora da surra. Apanhou até a sua avó intervir. Ficou caída no chão, não quis descer e dormiu ali mesmo. Nesta noite, sonhou com o pai, que nunca conheceu. Acordou com vergonha do vestido e decidiu nunca mais visitá-lo.

Passou um outono e ela não o viu. Longe do sótão, ficou ainda mais calada. No outro, Lia “esqueceu” o ocorrido e resolveu subir. Com um diário na mão, correu para ver o amigo. Ficou surpresa ao ver que ele continuava igual e com os seus desenhos. Ela sentou e abriu o seu diário na primeira página. Leu o que a pouco tinha escrito “Mais uma vez o outono chegou sem avisar”. Ao terminar a frase percebeu o vestido tomado por ciúme, afinal era ele quem sabia das histórias e não o diário. Sem hesitar, arrancou a folha escrita, amassou e jogou num canto. O diário nunca mais foi aberto.

As tardes de outono se repetiam. A menina chegava apressada da escola, colocava a mochila em cima da mesa da cozinha e subia correndo, antes que a luz do dia acabasse, porém - e sempre há um porém - uma tarde foi diferente. Lia já tinha 12 anos completos, estava sentada olhando fascinada para o vestido, quando percebeu algo estranho. Passou a mão no fundilho da calça e sentiu o molhado. Com a mão apontando para a luz, viu o sangue. Ficou assustadíssima. Gritando, mostrou aquilo para o vestido, mas ele nem se mexeu.

A avó escutou os prantos e acolheu a menina. Explicou que a partir daquele outono, todo mês sangraria e que o sangue era prova de que um dia seria mãe. Lia não entendeu muito bem, mas se conformou. Neste mesmo dia pediu, mais uma vez, para a avó lhe contar a sua história preferida.

E pela última vez, a velha contou, porque logo depois faleceu. Colocou a neta no colo e repetiu. “O vestido do sótão não é comum. Foi usado, numa tarde de outono, por uma bela princesa, que vivia no alto da montanha. No dia do seu casamento, estava tão nervosa que acabou comendo demais, por isso não conseguiu caber no vestido. Então, a costureira do reino teve que descosturá-lo e desfazer algumas rendas. Assim ela casou, com o vestido aberto. Mas a princesa estava tão linda nele, que ninguém notou tal imperfeição”.

“Mas, vó, como o vestido veio parar aqui?” A pergunta ficou sem resposta e Lia criou a própria. “O vestido nobre quis dar alegria à casa pobre”. Um dia ela tomou coragem e perguntou à mãe porque ela não gostava do vestido. “Me deixa em paz”, era a frase que escutava para tudo o que perguntava “Mãe posso dormir com você?”, “Mãe coça as minhas costas”, “Mãe olha o meu desenho”.

Aos treze, muita coisa mudou. Até a sua relação com o vestido. Lia já não tirava a camiseta na frente dele, quando sentia calor e começou a guardar segredos na própria cabeça. Mas teve um que fez questão de não guardar. Apaixonada, contou como foi beijada, na escola, por um menino mais velho e muito mais bonito do que ela, para ela. Perguntou ao vestido se ele já tinha sido beijado. Como ele não respondeu, Lia o beijou.

Assim, as tardes de outono passaram a ser cheias de sorrisos de canto de boca e brilho no olhar. Ela sentia um calor inexplicável na espinha, quando estava ao lado do garoto, mas o romance foi breve, não durou nem até ao término da estação. O dia do fim do namoro foi como o dia da morte da avó. A menina chegou ao sótão trêmula, se esticou num canto para chorar e não contou nada ao vestido. Percebeu que ele também guardava dor e teve dó dele, pois jamais pôde chorá-la. Lia, então, chorou pelos dois a tarde toda.

No ano seguinte, a história contada sobre aquele vestido já não satisfazia a menina crescida. Ela olhava para ele e só enxergava mistério. Não compreendia porque o vestido tinha de ficar pendurado ali. Nem porque a sua mãe nunca a deixou costurá-lo.

As visitas ao sótão diminuíram. Em compensação, ao quarto da avó aumentaram. Revirava todas as coisas da velha. Via fotos antigas, pedaços de tecidos, relógios parados no tempo. Mexendo numa caixa, avistou uma carta da avó que jamais chegou ao destino, à irmã de Minas Gerais, datada de 21 de outubro de 1969, exatos cinco meses antes do seu nascimento. Na carta, havia muito desespero. Ela dizia que seu marido havia fugido por ter cometido uma atrocidade com a filha. “Ele pegou o meu vestido de casamento, fez a minha menina vestir e a levou para a praça. Lá ele rasgou toda a roupa e gritou para todo mundo ouvir, que ela jamais usaria um vestido como aquele, porque não era honrada. Minha irmã me ajuda, ela está grávida, mas a criança não terá pai, porque o infeliz mandou matar”.

Lia não terminou de ler. Sentiu culpa. Sentiu pena. Desta vez não chorou. As folhas secas do outono pareciam mais secas. Pegou a carta, dobrou e a entregou para a mãe, que cortava a carne. Ela abriu e leu ali, na cozinha mesmo. Ficou imóvel. Como se fosse punição o vestido nunca fôra para o lixo. Lia não conseguiu abraçá-la, mas os seus olhos valiam mais do que qualquer tentativa. A mãe terminou de cortar a carne, e a menina temperou e fritou. As duas sentaram-se na mesa, coisa que nunca acontecera, e, juntas almoçaram, sem trocar uma palavra. Aquela foi uma tarde de cumplicidade, que já estava desenhada na saia do vestido.