segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A pele diz

Sexo confere poder.
Com você não amigo meu.
Jamais queria te cobrar por um gesto que não seria seu.

Sexo poderia me fazer odiar-te.
Você não amigo meu.
Você me vê do avesso.

Sexo subverte.
Com você não amigo meu.
Você é aquele que me conhece além da roupa “esquisita” que costumo vestir.

Sexo fragiliza.
Com você não amigo meu.
Eu tenho o seu olhar que me engrandece.

Sexo retrai.
Com você não amigo meu.
Para ti guardei a pureza de me dar.

Sexo é insatisfação constante.
Com você não amigo meu.
Você me sacia apenas com o seu olhar.

Sexo enlouquece.
Com você não amigo meu.
Você é a sanidade árdua em meus passos descalçados.

Sexo rebaixa o amor.
Com você não amigo meu.
Porque eu te amo.

domingo, 28 de outubro de 2007

Teatro

A aparente certeza abalou-se. O gozo interrompido pelo sofrimento gozado, sentido na privada, despertou o que não agüentava calar. Sem medo, o corpo eletrizado e embalado pelo devaneio e vontade de ser e dar mais se inquietou. Como chama que circula pôs-se a girar. É preciso viver isso! Preciso. Preciso? A incerteza sempre espantou o seu desejo de ser e dar mais! A arte gritando sufocada queima o corpo estarrecido de tanta razão. No misto de realidade, ser e dar mais, uma rápida fuga a feira. O cheiro da fritura do pastel conforta aquele corpo ainda pequenino e protegido. É só caminhar. Entre laranjas e alfaces, o corpo obedece.

Meus óculos estão quebrados

A menina vivia feliz dentro da janela de vidro. De vez em quando ela via o mundo lá fora. Ficava assustada. Com o passar do tempo, além de assustada começou a ter vontade de sumir. As promessas daquela sedutora janela pareciam não conter mais a menina, que sonhava, planejava, sonhava, planejava, sonhava... Apenas sonhos, que jamais seriam outra coisa, se não sonhos.

Aquela realidade inventada já não bastava para a menina do vidro distorcido. Lá dentro era bom, mas um sinal de qualquer movimento lá fora era o bastante para uma revolta sem tamanho. Gotas de fantasia não satisfaziam sua sede. Ela chorava o choro dos miseráveis e ria o riso dos desesperados.

Ficou com febre. Estado permanente. O calor do seu corpo embaçou todo o vidro da janela. Estado de graça. Ela não via mais nada lá fora. Parecia então, sua salvação. Febre. 40 graus, 41, 42... Promessas compridas. Beijos doces, corpos nus e plenos. Foram três meses. Ela viveu a sua sina, viveu o seu sonho, viveu... Até dormir, pela primeira vez, um sono tranqüilo.

Parte ao todo

Eu me apaixonei pela experiência e pela falta dela. Pela certeza e pela vontade de saber. Duas peles distintas, porém igualmente claras como a neve e plácidas como esta música que toca agora. Com uma, a possibilidade de realizar um sonho, com a outra, a possibilidade de sonhar mais. Difícil explicar. Fácil sentir. Por mais que eu pense que deveria escolher uma para seguir, não dá. A doçura do olhar. A amargura para acabar. A pureza de se dar. As mãos para segurar. Voar ou ficar? Um dia saberei. Hoje não, hoje sou da tênue linha que divide as claras brancas figuras. Da sutil marca que separa. Da prisão inexistente neste risco pontilhado quase apagado, que de tão leve não me deixa sair.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Parede nua

Hoje achei o quadro feio. Julguei o desenho, as cores, as palavras. Feio. Até o que ele representa, eu não gostei. Até a sua indefinição presente em mim me pareceu insegura demais. Só a grossura das linhas debruçadas ali não me assusta, nem me parece ruim, prefiro assim. Intensa. Pensei em tirá-lo da parede e colocá-lo no fundo do armário, aquele mesmo, lembra? Evitei o toque. O toque, que entre as duas coisas que te falei, me faz maior, me faz multiplicada em mil. Eu não o olhei de todos os ângulos possíveis, aliás, não sei te dizer quais são todas as possibilidades - a exatidão nunca foi meu forte - mas escolho uma. Quis te dizer que a música suspira, porque suspira como eu. Na vontade de arrancá-lo da parede me vejo fraca, mentirosa, então, suspiro um pouco mais. Vou suspirando, quando a falta é maior. É um soprar de velas sem fim, sem aplausos no fim. E é este mesmo final que me consome. O previsível cortar do bolo. Algém me disse que eu estou apaixonada. Já ouvi dizer que apaixonar-se é a vontade de se reinventar. Mas eu digo que a minha paixão é um encontro com mais de mim. Um voltar-se a minha pele. Ser nua. Esvaziada. E sua. O quadro fica! Preenche a parede (pelo menos). E enquanto isso? Eu vou suspirando.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Boa Noite

Dona Idalí só consegue dormir depois que todos se deitam. Caminha de quarto em quarto verificando o sono alheio, tampa a privada e checa todas as trancas da casa. A noite é como um santo remédio. Antes de deitar esquenta o seu chá, coça a barriga do gato Jorge e escuta o vendedor de aspirinas na rádio, mal sintonizada, com barulho de AM. Onze horas em ponto. Há 20 anos anunciando os bens das aspirinas, o locutor mantém Dona Idalí apaixonada. Certa vez, ela ligou para a rádio e conseguiu ser atendida por ele mesmo, o locutor. Mas ao ouvir aquele "vozeirão" desligou e nunca mais ousou tentar. Arrasta o pé pelo corredor até chegar ao seu canto. Lá, solta seus peidos, apenas noturnos. Solta também o coque e coloca dois grampos no cabelo branco, um de cada lado para não acordar arrepiada. Tem horror a cabelo mal arrumado e a acordar durante a madrugada sem conseguir ascender a luz. Por isso, sempre testa o abajur. Fecha todas as portas do seu guarda-roupa, enxuga a poça de goteira no chão que cai do teto, coloca as meias marrons e dá um beijo na foto do falecido. Sentada na cama, fuma com gosto o último cigarro. Deita-se de barriga para cima, cobre-se até o pescoço e fecha os olhos.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Fome


Como eu te amo
Como e te amo
Coma e me ame
Coma-me

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Alvorada

Naquela manhã o despertador não tocou e Lucia acordou com as horas grudadas no céu da boca. Não saiu da cama por duas vezes e correu sem parar durante o sono. A hora do xixi matinal não passou. A preguiça espreguiçada durou a eternidade. E mais uma vez ela sorriu ao perceber a vida tranqüila a qual se propusera. Lembrou do sonho da noite passada, tão exato quanto à maquiagem que usa antes de sair de casa. Mirou a janela para que os ouvidos pudessem ouvir o barulho da cidade. Silenciosamente ela ouviu o bocejo e continuou na cama. Em oito quilômetros estaria na sua mesa para mais um dia de trabalho. Quis chorar, mas antes pensou “é questão de tempo”. Sem lágrimas, virou para o espelho e viu o rosto sem remelas, sem rugas, perfeito como as contas de somar do primário. O copo de água intacto em cima do criado mudo causou estranheza. “Não tomei água ontem?”. Sentiu a garganta seca e tentou salivar três vezes. Sem conseguir, caiu num choro esquecido, tão velho quanto a sua tristeza, tão novo quanto a sua vida. Gritou para as cores vivas. Amarela, vermelha. A essa altura o tempo não era mais a questão, as cores estavam apagadas e o seu caso não permitiu espera. Sua vida de “sins” havia se transformado na negação de viver. Inventou que era feliz por um segundo e não suportou o peso da invenção. Ela evitou a dor da sua existência e deixou de existir.

domingo, 21 de outubro de 2007

Simples assim

Um anão deixou escrito em todas as páginas de seu mini diário, que encontrei quando eu estava ao lado de um chinês - o guardião do meu inconsciente - o seguinte: "Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa. Está frio ponho a blusa, está quente tiro a blusa". Li e reli as 77 folhas mais de onze vezes. Depois que entendi corri dentro da caverna escura, sem lanterna. Não me deixei seduzir pela cachoeira bonita, que dizia para eu mergulhar e adentrar a sua beleza. Coloquei a pedra no seu lugar, no topo da caverna. Fora dela. Ele, o anão, voltou. E o amor, então, estava livre.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O começo

Já é primavera.
Mas eu continuo a existir no silêncio.
Num exílio permanente, onde a fonte é o meu desejo.
Ardo a espera do adeus.

Onde devo existir?
Se a matéria se faz presente quando a toco.
Posso ser quando me adentra.
Em mais uma noite paulistana.

Floresço mesmo assim, na poeira.
Na morte de várias tardes de sol.
E paro como se nunca tivesse ouvido.
Tua alegria de um dia só.

Para a estréia de mais uma estação.
Escrevo-te o fim, sem saber o meio.
Na ânsia de mais.
Dou nada, certa de que isto é tudo.

O nada, ele é seguro.
Tão certo de não ser.
Eu existo?
Ele existe.