quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Boa Noite

Dona Idalí só consegue dormir depois que todos se deitam. Caminha de quarto em quarto verificando o sono alheio, tampa a privada e checa todas as trancas da casa. A noite é como um santo remédio. Antes de deitar esquenta o seu chá, coça a barriga do gato Jorge e escuta o vendedor de aspirinas na rádio, mal sintonizada, com barulho de AM. Onze horas em ponto. Há 20 anos anunciando os bens das aspirinas, o locutor mantém Dona Idalí apaixonada. Certa vez, ela ligou para a rádio e conseguiu ser atendida por ele mesmo, o locutor. Mas ao ouvir aquele "vozeirão" desligou e nunca mais ousou tentar. Arrasta o pé pelo corredor até chegar ao seu canto. Lá, solta seus peidos, apenas noturnos. Solta também o coque e coloca dois grampos no cabelo branco, um de cada lado para não acordar arrepiada. Tem horror a cabelo mal arrumado e a acordar durante a madrugada sem conseguir ascender a luz. Por isso, sempre testa o abajur. Fecha todas as portas do seu guarda-roupa, enxuga a poça de goteira no chão que cai do teto, coloca as meias marrons e dá um beijo na foto do falecido. Sentada na cama, fuma com gosto o último cigarro. Deita-se de barriga para cima, cobre-se até o pescoço e fecha os olhos.

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